sábado, 19 de maio de 2007

O Chico da Damaia

Faltam-lhe 2 dentes, compensados com duas argolas, douradas, nas orelhas. A cara está marcada pela vida, e os olhos, por estranho que pareça, têm algo de infantil, duma infância esquecida. Sorri quando fala, mas não sorri de felicidade, sorri com os olhos abertos de loucura, um sorriso que intimida sem precisar de fazer muito por isso. É chamado à conversa, por estar de passagem, porque estamos no Bairro e no Bairro é assim (e porque as cervejas não grandes amigas da clarividência), para dar a sua opinião sobre marketing, tema que estava a ser alvo de discussão. O marketing é um chamariz, opina ele. E publicidade? Epah, como quem diz já me estão a pedir de mais. Decide ficar, decidimos deixá-lo ficar, já que o tínhamos convocado para tão acesa discussão.

Passado algum tempo, só estou eu e ele. Do primeiro para o segundo momento não sei como passámos. Como quando se está a ver um dvd em casa que se deixou a meio, e se avança um capítulo porque o capítulo seleccionado afinal não era aquele, é essa a ideia que conservo da passagem da conversa de grupo para o tête a dangereuse tête, ou seja, nenhuma.

Vem da Damaia, ofereceu-me o seu nome, "caso tenhas algum problema já sabes", mas o álcool não me permitiu guardá-lo. Falamos da sua vida. Está na 4ª, ou seria a 5ª?, liberdade condicional, ou "precária", como ele dizia. "Porque é que estiveste preso?", pergunto-lhe, olhos nos olhos, com a intimidade que se tem com um amigo de um amigo que se acaba de conhecer. "Tráfico". "E agora como é que tás?", contraponho, porque a história, a realidade, tão diferente, me interessa, chega a fascinar-me, admito. "Tou bem man, tenho uma mulher, ando mais tranquilo, etc.", para minha surpresa. Tudo o que diz, di-lo aproximando a cara, porque talvez sempre o tenha feito assim, para mostrar que não tem medo de ninguém.

A conversa entra por caminho turvos, difíceis de recordar hoje, que serviram para que eu ganhasse a sua confiança, porque o tratava sem o temor no olhar a que devia estar habituado. "Vamos aí mandar umas 3 ou 4 unhas? Tenho 10 gramas de branca comigo! Da boa man, colombiana!", solta ele a dada altura. Pese embora a sua insistência, Rechazei a oferta, feita com trejeitos de loucura no olhar, brilhante, e mais uma vez no sorriso. "Mas ouve lá, então andas a tentar endireitar-te e tás para aí a vender coca? Tens uma mulher, e eu sei que não deve ter piada nenhuma para ti arranjares um emprego normal, mas se continuas assim tás a foder não só a tua vida mas a dela também!", decido arriscar, porque há algo de frágil nele que me dá a segurança suficiente para não estar com merdas. "Isto dá muita guita tás a ver, mas tu tás certo, agora tou a deixar de traficar, curto a minha mulher, tou a tentar pôr-me nos eixos, mas leva o seu tempo!", elucida-me com franqueza. Continuamos a falar, sobre isto e aquilo. "Curto bué o teu pensamento, és esclarecido tu man!", diz-me ele. "Obrigado", agradeço-lhe.

A noite caminha para o fim, e despeço-me do Chico da Damaia, chamemos-lhe assim, com um abraço e um "Força aí". Fiz a minha parte, vamos ver se ele faz a dele.

1 comentário:

El-Gee disse...

uma boa historia, e muito bem escrita. estas vindas a Lisboa a meio do Erasmus trazem-nos uma sensibilidade especial e uma vontade nova de olhar e viver a nossa cidade. usaste-a bem e descreveste-a melhor. gostei