terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Conto com toques de conselho



"João era assim, e sabia-o. Precisava de se perder para se conseguir encontrar, de saber que o controlo lhe escapava por entre os dedos como finos grãos de areia, só assim gostava de ir à praia. E por ir à praia, entenda-se apaixonar-se. Sim, João era aquilo a que se convencionou chamar um hopeless romantic , and a textbook one, dizia quem julgava que o conhecia melhor.

No princípio, quando as paixões eram motivadas mais pela curiosidade e encontros hormono-acneicos, João refugiava-se na sua adolescência e nas suas borbulhas para justificar esse sofrimento do qual, misteriosamente, não se conseguia separar, por mais que quisesse, por mais que tentasse. E João tentava, ou pelo menos pensava que tentava, e debatia-se, protestava, vociferava que o mundo era injusto e o amor uma merda, sem no entanto perceber que o problema era apenas e só endógeno, e que já nessa altura vivia e crescia dentro dele como um parasita, um piolho amoroso, piolho esse que João, qual criança na sua frágil ignorância, coçava de forma raivosa e desesperada, porque João não sabia como curar tão ardiloso problema. E por piolho entenda-se ego, ego esse que João acalmava e sossegava, justificando-se duplamente, a ele e ao ego, perante essa sua tendência para sucumbir perante paixões não correspondidas. Pensava ele que o seu problema era de uma gravidade tal que seria impossível existir alguma cura para essa maleita que o atormentava nas manhãs da sua adolescência resignada.

Passaram os anos, e com eles surgiram beijos, amores, descobertas, aventuras e alguns (poucos) arrependimentos, sempre com a curiosidade como pano de fundo de um sentimento ofuscado. Para João, tudo era novo, e por isso - e pelo pano de fundo do palco das suas acções - é que os arrependimentos eram poucos. No entanto, João experimentava, mas não se inscrevia, não se apaixonava verdadeiramente, por medo, por segurança, por estar plenamente convicto de que a paixão só era concebível na sua forma sofrida. Fugia-lhe a adolescência, e com ela a desculpa do patinho feio que sustentava uma vida de engano, mas os dilemas amorosos, esses, tornavam-se cada vez mais robustos, complexos e irresolúveis. E assim ia vivendo, refugiando-se em paixões impossíveis, mais-que-platónicas, paixões que não o eram. O que lhes faltava em amor, sobrava-lhes em sofrimento, se bem que para João a paixão era exactamente isso, vazio, aperto e sofrimento.

João não percebia que de paixão isso não tinha nada, que essa paixão era tão verdadeira como o fogo que cheira a gasolina. Era paixão destruidora e não criadora, pelo que nunca poderia ser verdadeira e absoluta, e assim, João jamais seria feliz. Não compreendia que o que sentia, ou melhor, o que sentia evitando sentir, se devia, não à impossibilidade do sentimento, mas ao disfarce carnavalesco por ele criado, à redoma de segurança dentro da qual João vivia. É que João refugiava-se inconscientemente nas paixões impossíveis, como ele gostava de as chamar, pois sabia que assim nunca sairia totalmente magoado, uma vez que estavam condenadas à partida. O medo do fracasso, o medo de falhar, superiorizavam-se à vontade de se apaixonar, fechavam-na à chave no quarto dos sentimentos do seu coração. E esse subterfúgio, por mais contraditório que possa parecer, era o que lhe permitia, sem que no entanto o soubesse, continuar a acreditar no amor, dado que nunca tinha sido realmente desiludido. A sua ideia de amor era incompatível com qualquer forma de sofrimento, e era por isso que João se comportava dessa maneira, iludindo-se em nome do seu ideal inconsciente, quase kantiano, de amor. Sofria, é verdade, mas de uma maneira pensada, racional, minuciosa até, como se de um mal-menor, quando comparado com o sofrimento, esse sim imenso e arrasador, que se apoderaria dele se alguma vez tentasse verdadeiramente amar e não fosse correspondido, se tratasse.

Até que um dia, não se sabe bem porquê mas desconfia-se por quem, João percebeu que sofrimento e paixão estavam efectivamente interligados, não de forma horizontal, como achara até então, mas sim verticalmente. Compreendeu que só conseguiria amar completamente se admitisse o fracasso e a desilusão, não na forma fingida que já bem conhecia, mas como sentimento inevitável de uma paixão fracassada. Que o risco fazia parte do jogo, da contenda, de se apaixonar. E ao pensar assim, João compreendeu também que não havia mal nenhum nisso, que da mesma maneira que uma relação começa, pode acabar, porque as pessoas, tempos e vontades mudam, porque às vezes Pimenta Machado tem alguma razão: o que hoje é verdade amanhã pode ser mentira (ou pelo menos pode não ser tão verdadeiro como era ontem), e quando assim é one's gotta learn to let go, em vez de se deixar levar e seduzir pela obsessão da auto-culpabilização, espiral interminável de uma tristeza que corrói uma pessoa por dentro. "Isso, nunca!", pensava João, ao mesmo tempo que se sentia revoltado com o tempo que tinha demorado a perceber algo que agora lhe parecia tão óbvio, tão estupidamente óbvio. Descobriu ainda que só quando uma pessoa aceita a sua natureza humana, influenciável, passion-driven e imperfeita, é que está pronta para amar completamente. Que, no fundo, if you're not able to eventually have to let something go, you're not able to love at all.

Não se sabe se João é ou foi feliz, até porque não se sabe se João existe no presente ou faz parte de uma memória passada. O que se sabe é que, desde então, João perdeu o medo de se apaixonar, passou a sentir-se vivo, apaixonou e apaixonou-se, e percebeu que, como em quase tudo na vida, é preciso errar para se conseguir acertar."

Pedro Garfias, adaptado


Um conselho para um amigo.

4 comentários:

Anónimo disse...

fiquei speechless acho mto bom! Resumiste em bruto muita gente ou pelo menos fazes de algumas pessoas... Q bom trabalho um abr

Anónimo disse...

...fases!

RS disse...

bom texto... muito bom texto! gostei imenso! Imprimes de certa forma uma maneira de amar "risk free" tal como Zola gostava de imprimir nas suas personagens!
Cada vez mais gosto de ler os teus textos

rosé mari disse...

muito obrigado, terei de ler os escritos desse senhor para ver se existe ou não fundamento para uma acusação de plágio póstuma